Mais do que um desentendimento envolvendo duas figuras conhecidas do público, Silvio Santos e Zé Celso Martinez, o imbróglio sobre o entorno do Teatro Oficina aponta para necessidade de preservação de um importante espaço histórico e cultural protegido pelo IPHAN e debate sobre modelo de cidade
No jornal O Estado De São Paulo de 05/12/17, Gabriel Rostey sugere uma boa discussão sobre o imbróglio acerca dos terrenos pertencentes hoje ao Grupo Silvio Santos (SS) no histórico Bairro do Bexiga, propondo o impasse como oportunidade de discussão sobre o desenvolvimento da cidade e não uma simples “briga de comadres”, entre Silvio Santos e o diretor Zé Celso Correia, do Teatro Oficina. (http://www.esquina.net.br/2017/12/05/na-briga-de-ze-celso-e-silvio-santos-o-interesse-do-oficina-tampouco-e-o-da-cidade/)
Comecemos por entender o contexto onde o Teatro Oficina e os terrenos do Grupo SS se inserem. Isabela Forti, advogada em direito econômico pela Fundação Getulio Vargas, constata em artigo sobre o tombamento do Teatro, que o mesmo se deu em três instâncias: na federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); na estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico; e na municipal pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, e cita a forma complementar do último tombamento (IPHAN/2010), cujo parecer “…destacou a necessidade de proteção do Oficina por seu fluxo histórico contínuo e não pela materialidade objetiva do edifício em que exerce suas atividades… Dessa forma, o teatro Oficina foi oficialmente tombado como bem histórico e artístico pelo IPHAN, tendo, dessa vez, seu entorno protegido…”. (http://institutodea.com/artigo/teatro-oficina-tombamento-e-zoneamento-urbano-parte-1/).
A proteção do entorno foi então explicada pela conselheira do IPHAN, Jurema Macedo: “…o Bexiga é hoje não apenas o bairro dos italianos, mas o lugar das festas populares, do samba paulista, de uma das mais importantes escolas de samba do país — a Vai Vai, e dos terreiros de candomblé. Em torno dos anos 1960/70, o Bexiga se tornou um pólo da vida boêmia da cidade, lugar dos teatros (ainda hoje são mais de dez), bares e cantinas, hoje integrados a um circuito turístico-cultural de São Paulo. (…) É imediato associar o Teatro Oficina a esse contexto por duas vias: tanto o Oficina pode ser tomado como elemento chave de um processo de reabilitação, quanto a preservação dos valores do bairro é essencial à vitalidade do Oficina.”
Assim, vê-se que o teatro tombado não está dissociado do seu contexto, reafirmando a simbiose entre esse bem cultural e as dinâmicas de um bairro histórico, marcado por sua riqueza e diversidade cultural. Se formos genuinamente discutir o destino para os terrenos comprados por Silvio Santos, respeitando o interesse do acordo democrático que vige, devemos passar pelo entendimento dessa formação urbana e do seu histórico, lembrando que as Leis que regem o “direito privado” são as mesmas, no fundamento jurídico, que dão corpo à preservação do patrimônio público e do usufruto comum, e devem ser seguidas como parâmetros de atuação.
O Bairro do Bexiga se forma ao longo do Ribeirão do Bexiga, em via descrita já em 1810 na primeira Planta da Cidade de São Paulo, a que hoje conhecemos como Rua Santo Amaro, lateral ao terreno em foco. Tal via antiquíssima era caminho de ligação do Centro à Vila de Santo Amaro; estrada milenar traçada pelas populações ameríndias em direção ao Rio Pinheiros. Dali partiam tropeiros rumo ao sul na Colonização e Padre Anchieta fez uso dela para carregar a imagem consagrada que fundaria a igreja de Santo Amaro, na sua marcha pela civilização ocidental.
O bairro conta ainda com uma grande diversidade de etnias e culturas, onde se juntam memórias de jesuítas e boêmios, tropeiros e sambistas, negros e judeus, espanhóis, portugueses e italianos, artesãos e operários, sacralizados por Adoniran Barbosa numa Villa Mítica que exprime os primórdios de nossa história urbana. Hoje, o bairro tem uma dezena de bens tombados e protegidos em âmbito federal, estadual e municipal, e não é à toa que o último Plano Diretor de São Paulo coloca o Teatro Oficina e seus vizinhos em área destinada à valorização do patrimônio histórico e cultural, decretando-a parte do “Território de Interesse de Cultura e Paisagens Paulista/Luz”. (http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/)
Mas voltemos ao terreno em questão: o que hoje é chamado de “terreno do Silvio Santos”, na verdade é a conglomeração de vários terrenos menores, parcelados entre os séculos XIX e XX. Cada qual, quando, continha uma edificação, formando uma quadra urbana que já havia recebido apreciação de órgãos de urbanização e de preservação, por sua valiosa circunscrição topológica e tipológica. No entanto, Silvio Santos conseguiu demolir e desfazer os desenhos citadinos de cada uma das propriedades, até mesmo da sinagoga em que a comunidade Sefardita se formou em São Paulo, transformando o conglomerado histórico num enorme “terreno vazio”.
Os lotes incorporados por Silvio Santos tiveram como ponto de partida um estacionamento do Baú da Felicidade, em área nunca antes edificada e que no início do Século XX foi estabelecida como miolo de quadra a ser preservado, por ser área drenante e de contenção das águas que desciam do espigão da Avenida Paulista para desaguar lentamente no Anhangabau, formando o vale do Bexiga. Provavelmente essa área já pertenceu ao município e não se sabe ao certo como chegou às mãos do Grupo SS, pois nas plantas da cidade de 1930 (Sara Brasil) e de 1954 (Vasp Cruzeiro) também consta ser destinada para uso público. (http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br).
Não se trata de relativizar o direito que o atual dono tem de dispor do terreno, mas sim de atribuir responsabilidade a um proprietário que detém uma série de bens históricos e ambientais, entendido que seu usufruto não pode ser a destruição da face pública destes patrimônios. Se prevalecer o modelo de empreendimento proposto pelo Grupo SS, devemos entender que esta propriedade não respeitou o estabelecido como “de direito” pela legislação da cidade, fundamental contrato entre proprietários e cidadãos, cerne da vida social, a ser respeitado como um bem superior que garante a própria propriedade privada no interior da urbe.
A cidade é uma história viva, se faz por gerações, valorizada por sua própria constituição como espaço humano, econômico, estético e sócio-ambiental. Seus cidadãos têm direito ao patrimônio urbano, herdando a responsabilidade de manter seu valor comum e sua memória vivos.
A negação de espaços urbanos públicos apenas se legitima na tragédia de uma sociedade cingida pelo abismo socioeconômico e a desconfiança de que espaços urbanos só se fazem seguros ou “revitalizados” quando uniformizados para o uso de alguns, em detrimento de outros. Isso quando deveríamos, pelo contrário, buscar fortalecer os espaços de convívio e alteridade, de cultivo de tradições e vivências da paisagem construída, num sistema de corresponsabilidades que faz com que a riqueza urbana seja algo de benefício e valor comum a todos.
Não estaríamos ante a experiência fracassada destas ilhas de desenvolvimento, os condomínios privados, bolhas modeladas pela especulação imobiliária? Um outro “Brascan” nesse lugar, com áreas comuns mediadas por comércio gentrificado e fruição destinada àqueles de certo nível econômico, iria acolher o pequeno comércio, as festas populares, artistas e visitantes, moradores de cortiços, prédios e/ou casas já existentes? Ou deveríamos abrir o terreno de fato, aceitando a possibilidade de uma “re-costura” histórica e urbana, ao conectar ruas lindeiras e dar acesso à população para opinar sobre aquilo que quer e precisa? (ver texto Bianca Antunes publicado no jornal O Estado De São Paulo : http://www.esquina.net.br/2017/11/27/no-debate-do-teatro-oficina-nenhum-dos-lados-considera-o-entorno-do-terreno/)
Afonso Luz é crítico de arte e curador do Instituto Sergio Rodrigues; formado em Filosofia pela USP, foi diretor do Museu e do Arquivo Histórico da Cidade de São Paulo e assessorou o Ministério da Cultura na gestão Gilberto Gil.
Anna Dietzsch é arquiteta formada na FAU-USP, com mestrado em Desenho Urbano pela Universidade de Harvard, coautora de projetos como a Praça Victor Civita, em São Paulo, e o Museu 11 de Setembro, em Nova York